Qual seria a
explicação lógica para este tipo de situação? Olhando o sete de copas cheguei a
pensar que talvez estivesse mesmo enlouquecendo. Noite passada cheguei um pouco
embriagado, mas não lembro de ter jogado cartas no bar e muito menos de ter
colocado uma dentro da meia. Que idiota faria isso?
Dormi pra
cacete, já é de noite e não tenho nem noção de qual dia da semana. Com a febre
castigando meu corpo, pude senti-lo fraco, mas estranhamente não sentia mais
vontade de dormir. Resolvi ir até a cozinha e tomei um remédio, mas não tinha
porcaria alguma. Peguei um copo d’água e liguei a TV.
Ao tomar a
água, notei que estava com gás. Será que algum irmão meu resolver dar uma
variada ou comprou errado mesmo? Continuei bebendo e ao navegar pelos canais,
percebi que todos estavam em preto e branco. Fui até o aparelho de TV gateado e
regulei os cabos. Continuou a mesma merda. Estava ruim enquanto estava bicolor,
mas conseguiu ficar pior quando somente os canais abertos ficaram disponíveis.
Porcaria de gato, gambiarra mal feita.
Assisti vinte
minutos de algum programa de auditório idiota e conclui que têm pessoas que
devem entender esses programas de alguma maneira diferente, deve ter alguma
linguagem própria para entender, algum curso que é necessário como requisito
para captar algum sentido figurado não perceptível no plano óbvio. Caso
contrário, é apenas um programa idiota mesmo.
O apartamento
não poderia estar tão vazio assim, alguém deveria estar em um dos quartos, pois
independente do dia, sempre tem gente escutando música alta, andando de um lado
para o outro para pegar comida ou até mesmo fazendo o que os adultos fazem em
um quarto com alguma mulher e muita disposição.
Conforme fui
chegando perto do corredor onde ficam os quartos, senti um cheiro de carne
podre muito forte. Tive que tapar o nariz para seguir em frente. O que diabos
deixaram apodrecer por lá? Sei que ninguém no recinto é um exemplo de higiene,
mas nunca tínhamos chego a um nível tão fétido. Fiquei surpreso ao ver uma
enorme exclamação pichada na porta do Renato e um sino amarrado ao trinco. Um
sino prata e pequeno, do tamanho de um enfeite de natal. Ao abrir a porta, o
sino tocou alto escuridão adentro.
Comecei a
tremer, pois sabia que algo péssimo tinha acontecido. Estranhamente já tinha
ideia do que os sinais poderiam significar. De pé, no meio da escuridão,
sentindo todo aquele cheiro insuportável, tomei ciência de parte da situação e,
pressentindo o terror que se seguiria, acendi a luz.
Caí no chão assim que o vi.
O sangue banhava o chão e minhas
meias brancas e, com uma faca fincada rosto adentro, um pouco abaixo do olho
direito, meu irmão mais velho se encontrava estirado no chão. Seu pijama estava
todo rasgado e seu peito, aberto, numa carnificina que jamais tinha visto.
Um rato comia suas tripas
expostas enquanto eu o observava. O aparelho de som estava ligado, com o volume
baixo, tocando Man in the box do Alice In Chains. No chão um pacote de camisinha
aberto, porém com o preservativo ainda enrolado.
Levantei-me
e corri até porta, com pensamentos vazios e desesperados.
Estava trancada.
Ainda em choque, sentei no chão,
com as costas encostadas na porta de casa e segurei minha cabeça entre os
joelhos.
Os
traficantes devem ter dado um fim no Nato enquanto eu estava dormindo. Nossa
mãe sempre disse que se envolver com essas porcarias poderia custar a vida de
alguém. Não consegui encontrar outra explicação. Ele sempre fora envolvido com
esse lance de falsificação de documentos. O esquema era simples, os traficantes
pediam que meu irmão falsificasse meia dúzia de documentos no photoshop para
que pudessem fazer empréstimos em nome de gente morta. Claro que gente dessa
laia não vive só disso, mesmo porque quanto mais dinheiro sujo se ganha,
torna-se algo compulsivo. O dinheiro sujo é uma das piores drogas do mundo, com
ele vem uma camassada de porcaria junto. Gente morta, assassinatos
encomendados, tráfico de órgãos, drogas, armas e, é claro, mutretas com políticos.
Peguei
o telefone para avisar a polícia, disquei o número e deu ocupado. Ocupado?
Tentei novamente e só ouvi a voz da gravação dizendo que o número não existe.
Essas empresas de telefonia me dão nos nervos as vezes. Disquei novamente e
algo diferente aconteceu.
A
TV ligou no último volume em um canal não sintonizado, ecoando o chiado alto
pelo apartamento. O telefone no quarto do meu irmão começou a tocar, mas sem
intervalos. Pude ouvir meu celular tocando no meu quarto também. Assim que fui
pegá-lo em minha cama, a luz piscou e queimou. Instantaneamente os telefones
pararam de tocar e a TV desligou. Tentei acender a luz da sala e nada, a
energia parecia ter acabado.
Que belo início de noite.
A
ligação no meu celular era anônima e desligou antes que eu pudesse atender. Meu
aparelho é um daqueles bem lixos, antigos, sem visor colorido e com toques
monofônicos, mas com uma vantagem: a famigerada lanterna. Além de ser ruim,
ainda estava sem sinal, só sobrava a lanterna mesmo. Comecei a vasculhar o
quarto em busca da minha chave, mas parecia uma cena de guerra, completamente
zoneado, dificultando o pente fino.
A
merda da chave não estava em lugar algum e sem luz impossibilitava por completa
a busca. Vesti uma calça jeans que estava no chão, um moletom do Ramones que já
havia sido preto e agora estava cinza, calcei um tênis de marca genérica e
peguei um martelo, que poderia resolver algum eventual problema no caminho para
o módulo policial. A essa altura do campeonato, tendo acontecido o que aconteceu,
é necessário garantir a sobrevivência.
Saí pela janela para chegar até o
corredor devido ao problema com a porta.
Já
tinha feito isso antes, quando alguém trancava a porta e esquecia que eu estava
lá dentro, logo para ir ao trabalho, era necessário me arriscar. Na primeira
vez tinha sido difícil, mas depois da décima vez, já estava acostumado –
ninguém costumava checar os quartos antes de sair, tampouco deixar a chave para
quem pudesse precisar.
O
vento congelara até minha alma e notei que uma neblina densa pairava sobre a
cidade, impedindo-me até de enxergar o chão, onze andares abaixo. A janela que
dava para o corredor estava quebrada, sorte minha. Tudo parecia normal no
corredor que, inclusive, estava iluminado. A garota que aguardava o elevador
não pareceu se espantar ao me ver entrando no corredor, pela janela, com um martelo
em mãos e cara de poucos amigos.
- Boa noite! – disse ela, e
sorriu timidamente.
- Erm... boa noite. – respondi
constrangido
Que delicinha! O protótipo que me
atrai. Branquinha, aproximadamente 1,65m, cabelos pretos um pouco abaixo do
ombro, lábios finos, formato dos olhos bem redondos, peitos que se encaixariam
em uma taça de vinho e vestindo uma roupa extremamente casual: jeans azul,
blusinha branca, all star e uma jaqueta jeans. O castanho dos seus olhos me
dominou, era acinzentado e profundo. Aquele filé esbanjava pedigree. Quando
aqueles olhos apontaram para mim, pensei no que havia acontecido e acendi um
cigarro de marca Classic, se é que posso chamar essa porcaria paraguaia de
marca. É o proletariado fumando o que há de “melhor” no mercado.
Já dizia um velho amigo meu, se
Classic fosse cigarro de rico, chamariam de “Cléssic” e se Marlboro fosse de
pobre, chamariam de Marboro.
O elevador
chegou e entramos. Ela apertou o sexto e eu, o térreo. Dentro do elevador,
senti um perfume maravilhoso, algo como jasmim. A garota me encantava por
completo. Fechei os olhos por um momento e imaginei que o elevador tivesse me
levando aos céus, de primeira classe e na companhia de uma Deusa.
As portas se abriram e ela saiu. Tão
bela indo quanto vindo.
Mesmo com toda
aquela beleza prendendo minha atenção, não pude deixar de notar que o andar em
que descera era completamente diferente dos que eu tinha visto. Parecia o hall
de um palácio! A alguns metros à frente tinha uma escada larga, com um tapete
vermelho, algo muito chique. Que lugar era aquele?
Assim que o
elevador fechou as portas, a luz acabou e o elevador parou. É só passar do
andar de rico que já volto a minha realidade de plebeu. Andar de rico... que
porra era aquela? Enfim, a prioridade era sair do elevador, depois pensar no
quão estranho aquilo parecia. Mesmo sem energia, tentei o botão da emergência
e, para minha surpresa, ele tocou uma campainha estranha.
- Alô? – disse a voz de uma
mulher.
- Oi! Fiquei preso no elevador,
pode me ajudar?
- Não tô conseguindo te escutar!
- TÔ PRESO NO ELEVADOR! – Gritei.
- Alô? – risos ao fundo.
- SEGUINTE! NÃO TEM NADA DE
ENGRAÇADO NÃO! TÔ PRESO NESSA POR... – O elevador começou a tremer e logo, a
cair.
Quem
quer que estivesse escutando e rindo, já não estava mais. Com a velocidade,
comecei a flutuar no ar até me estatelar de cara no chão, em meio a um
estrondo. O martelo que estava em minha cintura caiu com toda força ao lado da
minha cabeça.
Dia ruim.
Meio atordoado
com a queda, abri meus olhos. Enxergava embaçado e o ouvido zumbia. Escutei as
risadas novamente, mas desta vez vinha de fora do elevador. A única coisa que
mal conseguia enxergar eram os botões brancos e desgastados do elevador.
Coloquei a mão no meu bolso, apertei o botão e mais uma vez fui salvo pelo meu
Nokia 1100 e sua fantástica lanterna.
Dada a
situação, analisei minhas opções e tive de usar a criatividade. Os filmes
ensinam que alguma parte de cima do elevador mexe, sai, levanta ou alguma
porcaria do gênero, onde eu estava não podia ser diferente. Fui apalpando o teto
e
voilá, os filmes estavam certos
afinal de contas. Enxerguei uma luz um pouco acima, pelo menos uns 2 metros,
saindo por uma fresta da porta do segundo andar. A porta de baixo parecia
inacessível, então optei por subir pelos cabos. Na altura da porta, estiquei a
perna e consegui dar um chute na porta. Patético, o chute mal fez barulho.
- Hey! Alguém me ajuda aqui!
Estou precisando de uma mão, por favor! Alguém?! – Tentei novamente mais umas
tantas vezes, chutando e gritando.
Depois
de muita insistência, a porta pesada de metal abriu um pouco, o suficiente para
que eu pudesse passar de lado. Com um pouco de esforço consegui passar e logo
sentei no chão. Levantei a cabeça e agradeci, ofegante:
- Muito obrigado!
Não havia ninguém. Devia ser um
grande engano, só poderia ter dormido fora, não parecia em nada o prédio onde
residia. O lugar era um salão imenso. O teto abobadado, de pelo menos 15 metros
de altura, era iluminado com algumas luzes fracas que pareciam velas e no seu
centro havia um desenho horrendo da cabeça de um porco ensangüentado, com um dos
olhos saltados e vários dos traços que formavam a pintura do local eram vermelhos,
como sangue, formando outros desenhos bizarros como cavalos mutilados, sem uma
ou mais patas, membros de animais soltos, vacas com o interior exposto e demais
mutilações.
Meus olhos corriam o local como
um cavalo corre em uma pista de jóquei e não conseguia deixar de pensar que
quem fez o que fez com meu irmão pudesse estar ali, naquele lugar medonho.
Gente do bem não mora neste tipo de ambiente bizarro.
Todos traços
eram finos e perfeitos, dando vida aos animais de sangue, que pareciam me olhar
como moradores que flagram um invasor. As paredes eram de pedra, lembrando o
interior de alguma igreja da antiguidade, mas ao invés de santos, eu via
imagens que assolavam minha mente. Havia cinco cadeiras encostadas em cada uma
das três paredes, deixando o centro vazio. A outra parede tinha uma escada de
poucos degraus que levava a um andar com três portas, uma estava aberta e desta
eu ouvia muitas vozes, risadas e demais ruídos.
Senti-me
idiota com um martelo na cintura e roupas extremamente malacafentas. Não fazia
o típico herói com roupa bacana e olhos azuis. Cabelo ruim, olhos cor de cocô,
um moletom zoado do Ramones e um martelo na cintura. Sem contar que não havia
passado nem um desodorante antes de sair.
Felipe, o vingador mendigo.
Pensando
bem, quem passa desodorante pra sair de casa depois que vê o irmão em tripas?
Bom, acho que a estética não importava de qualquer maneira. A situação já era
bizarra por si só, logo o moletom do Ramones não significava nada de mais.
Continua...