sexta-feira, 6 de julho de 2012

À beira de um abismo surreal


I


                O dia começou com mais uma daquelas clássicas brigas entre meu sono mal dormido, meu despertador e o início da minha rotina. O botão “soneca” ri quando vê meu desespero, querendo muito dormir, mas tendo mesmo que acordar. Lá vou eu para mais um dia igual aos outros.

                Sinto a brisa fria da cidade, o vento gelado entra pela janela e, sentado em minha cama, luto para que meu raciocínio chegue à conclusão de que é hora de lavar o rosto e pegar o ônibus.

              Tamanho é o sono que faz meus olhos embaçarem a ponto de misturar as cores da parede, do chão e dos móveis, atingindo tons novos para cada canto que olho. Típico sentimento de insanidade passageira de quando acordo sem querer acordar.

Nestas horas tenho a impressão de o mundo é mais lixo do que realmente é.

Drama conhecido por todos os “amantes” dos expedientes matutinos.

                Ninguém em casa, mas a esta hora da manhã? Um pouco cedo para meus irmãos terem saído de casa. Nada, nem mesmo uma alma em nosso limitado apartamento. Nem mesmo o irmão vagabundo, desempregado há três meses. Alega que está apenas “curtindo” o seguro do desemprego. Uma ponta de esperança surge por esta simplória constatação – um dia diferente, será mesmo?
A folha que cai no caminho.

               Nada custa pensar na possibilidade. Lá vou eu apostar minha ficha novamente, é quase como uma aposta na loteria, você investe certo tempo pensando que aquilo poderá mudar sua vida, mas sabe que no fundo tudo continua a mesma besteira. É a famosa compulsão por pensamentos radicais que não tem muita afinidade com a força de vontade. Quero muito, mas nada faço para que algo mude. Deixo nas mãos da rotina e quem sabe ela me surpreenda.

Penso pequeno, ações simples, nada de complicações.

              Enquanto espero o ônibus, escuto música em meu nada moderno aparelho de mp3, porém minha alegria não dura muito. Mais surpresas para o meu dia, meu fone se foi. Enfim eu não estava tão errado quanto aos fatores surpresa do dia.

Frio, atrasado e agora sem música. Maldita casa China, deveria ter desconfiado que pagar R$ 3,50 por um fone de marca iraquiana não seria um bom negócio. Como não tenho o hábito de bancar o Dj do ônibus, optei por desligar meu aparelho e “apreciar” os sons da metrópole. Restavam apenas dois cigarros de marca vagabunda em minha carteira, os quais tinham sido guardados para ocasiões de extrema necessidade. 

Acendi um deles sem titubear.

O clima não parece ajudar. Uma garoa fina começara a cair e o ônibus ainda não chegara.

Estranho.

O motorista idoso, barbudo, com touca preta e que se gaba por ter vinte anos de firma, não costuma atrasar. Nestas horas me arrependo amargamente de sempre esquecer a droga do guarda-chuva.

            O cigarro lutava contra as finas gotas da chuva, assim como eu lutava contra minha vontade de voltar para casa, esquecer a vida e cair em meio a um sono tranquilo.
A espera durou uma eternidade, tive a impressão de que minha barba cresceu enquanto aguardava.

Enfim chegou.

Só quando entrei, percebi que jamais havia visto todas aquelas pessoas. Normalmente conheço todos que estão no ponto inicial, pois sempre pegamos o ônibus no mesmo horário - Será que acabei perdendo a hora mais do que pensava?

Senti um cheiro podre no ar. Não o habitual cheiro podre dos companheiros do transporte coletivo que não são usuários assíduos do bom e velho desodorante. Um cheiro que lembrava aterro sanitário. Estava experimentando um novo grau de complicação nasal. Aquilo me dava náuseas, tão forte que poderia causar alucinações.

Quando fui checar o horário em meu relógio, deparei com seu visor todo embaçado e impossível de visualizar os ponteiros. Engraçado, este pelo menos não comprei em uma loja de reputação duvidosa e já me acompanhava havia anos. Ainda assim um defeito estranho – visor embaçado? Algo relacionado à chuva? Não costumo ficar nervoso, mas já estava curioso demais com os eventos de um dia que mal havia começado. Chequei meu bolso e mais uma vez eu me complicara. Esqueci meu celular em casa.

Onde estava com a cabeça?

A ficha apostada enfim era de ouro, pois estava valendo mesmo a pena. Fui premiado com um dia de merda.

Sentei-me aos fundos, próximo a janela, em um banco solitário. Pensei novamente na possibilidade da confusão de horários e resolvi questionar uma senhora que estava sentada a minha frente. Cutuquei:

- Bom dia senhora. Pode informar as horas, por favor?

Vestes verdes surradas, cabelos brancos e bagunçados na altura do ombro. A aparência de quem já havia desistido de se preservar, um visual triste. Quando virou, levei um baita susto.

Não havia notado nada de anormal em sua fisionomia até então. Um rosto senil, já sofrido pelas consequências do tempo, com muitas rugas e o detalhe em questão: uma enorme cicatriz que ia da ponta do nariz, atravessava seu olho esquerdo e terminava onde seu cabelo começava. O olho centrado no meio da cicatriz tinha cor e aspecto de ameixa preta. Por um instante congelei, não conseguia desviar meu olhar daquele detalhe tão gritante. Olhou-me com sorriso insano, mostrando os poucos dentes que tinha. Paralisou esta feição por alguns segundos.

- Senhora? – Tentei, com intuito de despertá-la daquela espécie de transe.

Fechou a cara e olhou para frente novamente, resmungando algo que só os cachorros entenderiam. Resolvi não tentar mais perguntar o horário para mais ninguém. O clima naquele ônibus estava fora do normal e optei por tentar me distrair observando o trajeto pela janela. Um sol tímido lutava por entre as nuvens, dando uma vista cinza-alaranjada à bela cidade. O trajeto parecia diferente. Será mesmo? Talvez fosse mais uma das peças que meu subconsciente estava pregando.

Ao longo do trajeto, um homem entrou no ônibus, ziguezagueando, com a fisionomia de quem havia tomado uns bons tragos pela manhã. Sentiu dificuldades até para pagar a passagem, pois ao tirar do bolso algumas moedas, deixou-as cair no chão sujo e molhado. Sem muita paciência, xingou alto, pegou os trocos com manobras arriscadas e entregou ao motorista.

- Libere esta porcaria logo! Vamos!

Droga de dia! Um bêbado arruaceiro no ônibus logo pela manhã? Eu já nem sabia se era mesmo uma manhã, só rezava para que meu chefe perdoasse mais uma vez meus problemas com horários.

A chuva se tornara mais densa e o sol perdeu seu lugar ao céu. Em seu lugar pairavam pesadas nuvens, tomando conta de toda a infinidade azul. Mais uma vez me amaldiçoei por ter esquecido o guarda-chuva. Do ponto de ônibus até a empresa tem um bom bocado a se andar. Pela força da chuva eu chegaria tão molhado quanto atrasado. Uma postura admirável para quem ainda gostaria de ganhar uma promoção ou pelo menos um descolamento salarial.

Resolvi analisar um pouco melhor a situação atual e olhei para o fundo do ônibus. Lá se encontrava um grupo que me chamou atenção. Tomava quase todos os bancos do fundo, um grupo de cinco garotas. Morenas, todas usavam roupas marrons, sujas e semelhantes a roupas utilizadas em tribos indígenas americanas. A estatura era a mesma e pareciam irmãs, com a mesma cor de cabelo, porém com penteados diferentes. Duas delas, uma em cada ponta, amarravam sinos nas barras de ferro de apoio e todas entoavam um cântico baixo e medonho.

Sinceramente não sabia se havia perdido meus padrões do senso comum, mas aos meus olhos aquilo era surreal. Como diabos ninguém estava prestando atenção naquilo? Para não bancar o ridículo, optei por me comportar da mesma maneira que todos os passageiros. O dia escurecera a ponto de parecer noite e o frio tomava conta do interior do veículo, assim como a falta de lógica. Parecia um circo louco. Pessoas com olhares perdidos, o clima mudando subitamente, um verdadeiro pandemônio.

Em mais uma nova parada, outro figura para se unir ao circo da balbúrdia. Um garoto de no máximo quatorze anos, estatura baixa, cabelo tigela, vestindo um sobretudo verde ao estilo agente secreto, tênis all star vermelho e, apesar da ausência do Sol, usando um enorme óculos de Sol. Este novo passageiro ficou bem ao meu lado, em pé.

Por mais que o ônibus balançasse muito, o garoto não segurava nas barras de apoio e mantinha um equilíbrio invejável, como se tivesse seus pés grudados ao chão e dispensava problemas com a gravidade.
Por fim, tirou um baralho velho do bolso e começou a embaralhar, assoviando no mesmo ritmo medonho que as “garotas índias” ao fundo, como se tivessem ensaiado.

Novamente ninguém parecia se importar.

Depois de muito embaralhar as cartas, abriu-as num leque, com as imagens e números virados para baixo, apontando-as em minha direção. Sem entender ainda mais do que se tratava, apenas o olhei com ar de interrogação e, em resposta, ele levantou as sobrancelhas como que indicando o baralho.

Um pouco acanhado entendi a mensagem e tirei uma carta. O garoto me deu um tapinha nas costas, sorriu com dentes podres de quem jamais havia visto uma escova e foi para o fundo do veículo. Sentou-se um pouco a frente das “cantoras”, colocou um capuz que devia ser de um possível moletom logo abaixo do sobretudo e por ali ficou.

Surpreso com mais esta sequência de fatos, resolvi procurar a resposta na carta em minhas mãos. Infelizmente o sete de paus não me mostrou muitas surpresas, sendo apenas uma carta velha, em preto e branco, sem demais cores de ambos os lados. Ao lado oposto do número com o naipe, a carta tinha vários detalhes. Vários círculos, pequenos e grandes, uns dentro dos outros em uma confusão que me causava vertigens. Guardei-a em meu bolso.

Por um momento tive a impressão de ouvir um riso vindo de trás e tive quase certeza de que era do garoto das cartas.

          O ônibus começou a acelerar, chegando a uma velocidade impressionante. Já tinha visto motoristas literalmente “sentarem o pé”, mas não daquela maneira. Gostaria de ser rico nestas horas, descer daquele pesadelo e pegar um táxi, mas meu dinheiro não seria suficiente nem para pagar o café pingado do motorista. Quanto mais o motorista acelerava, mais acelerado o cântico ficava. Não conseguia ignorar tudo aquilo e o desespero começou a bater. Meu coração acelerava e meus pensamentos se complicavam.

Chegara à conclusão de que o ônibus estava me levando para o inferno, na terceira classe. Como seria o passaporte para o outro mundo para os ricos? Em um avião, tomando Whiskey escocês, sendo guiados pelo próprio diabo na sala de comando?

       Seguindo uma ordem lógica do caos, o homem bêbado se levantou miseravelmente, sofrendo para se manter em pé e desatou a gritar:

- CHEGOU A HORA! MISERÁVEIS!

Saiu pelo ônibus questionando incessantemente a todos por quem passava, mas ninguém parecia ligar, apenas eu.

Chega uma hora em que você começa a se perguntar se os loucos são mesmo os outros ou se está errando o referencial.

Neste momento desejei que aquele cara sumisse e que não viesse ao meu encontro. Estava à beira de um colapso, queria gritar a todos para que acordassem, pois pareciam em transe, como em uma cena de filme louco.

A cena lembrava um manicômio. Um velho desajeitado, fedendo cachaça, gritando frases sem nexo em um ônibus com uma velocidade absurda, um clima de extrema oscilação, pessoas com comportamento anormal e com roupas que só se usam em festas a fantasia.

“Já fiquei tempo demais neste universo paralelo”, pensei. Ao cogitar a hipótese de sair do ônibus, dei-me conta de que não tinha botões para sinalizar a parada. Nesta altura do campeonato não me surpreendi, apenas deixei o desespero contido tomar conta. Não podia descer até chegar ao destino.

Estava preso em meio a uma nebulosa desconexa.

O homem olhou em minha direção, aproximou-se e então disse:

- Por onde anda essa cabeça de vento?! Vou te mostrar algo que te fará se sentir melhor! Débil mental! Já está na hora de você acordar!

Começou a rir freneticamente e, num gesto brusco, tirou de sua jaqueta uma arma. Não tinha ideia de suas pretensões, mas optei por não me mover. Ouvi falar que nos casos onde um lunático estiver com uma arma em mãos, é importante não se mexer. O problema pode ficar maior ainda e a brincadeira sempre acaba em choro.

O desespero faz com que os pensamentos cogitem o absurdo. Por um momento pensei ser a melhor solução pegar a arma e atirar em todos aqueles cretinos ou até mesmo em mim, escapar era a ideia principal, não importando como.

Agi como sempre. Fazendo nada e assistindo. Nada como o habitual conforto.

O maluco, ainda rindo, fez algo parecido com o que eu só tinha visto em filmes de horror trash. Colocou a ponta da arma na boca, esbugalhou os olhos, foi até o fundo do ônibus, olhou bem para o garoto do sobretudo, disse algo incompreensível – não é possível entender o que um cidadão diz com uma arma dentro da arcada dentária – e retornou, mais uma vez, ao meu lado.

A senhora a minha frente parecia não se importar com o acontecimento e ria lunaticamente em tom baixo. A realidade era uma só, ninguém estava dando a mínima para o bêbado armado. O único prestes a borrar nas calças era apenas eu.

Desta vez, chegou com o rosto bem próximo ao meu, com nem um palmo de distância do meu nariz, ainda com a arma apontando para o céu da boca, fez o que eu pensava ser o óbvio. Atirou.

Miolos para todos os lados, o tiro fez um belo estrago. O sangue espirrou em minha cara e gritei algo que estava preso já fazia algum tempo:

- PUTA QUE PARIU! AJUDA! ALGUÉM ME TIRE DAQUI! SOCORRO!

Sangue nos vidros, no chão, em minhas roupas e por onde mais conseguiu alcançar com o estouro. Se com uma arma aparentemente mequetrefe daquelas, ele fez aquele rombo, imagino o que deve ter sobrado de Kurt Cobain ao utilizar uma espingarda quando cometeu suicídio, doidão de heroína.

Gritos de várias pessoas que até então eram nada mais que planos de fundo em meio ao caos. Curiosamente as garotas continuavam com a melodia. Comecei a pensar seriamente que elas eram fruto da minha imaginação. Os gritos estavam ensurdecedores, quando repentinamente o motorista pegou uma espécie de rádio e começou a gritar:

- CÓDIGO SETE! CÓDIGO SETE!

Como que obedecendo a um adestrador de animais, os gritos cessaram e o cântico enfim foi interrompido. Na sequência, o ônibus finalmente parou e as pessoas começaram a sair correndo. Quando fui me levantar para fazer o mesmo, reparei que a arma estava em meu colo. O garoto de cabelo tigela, ao sair do ônibus apontou em minha direção e gritou:

- Prenda o assassino!

Cheio de sangue, com um presunto aos meus pés, uma arma em meu colo e sendo chamado de assassino.

Que situação desgostosa!

Ainda em choque, não consegui responder e vi um policial negro, enorme, em frente à porta aberta, com olhar de águia e a fúria desenhando sua feição. O uniforme azul carregava vários distintivos, como se fosse de algum tipo de força especial e, no lugar do seu nome, as letras e números “YKE - 07”.

As jovens índias começaram a tocar os sinos em um ritmo calmo e triste, como que simulando uma trilha sonora macabra dos acontecimentos, mas desta vez sem entoar cânticos. Sem as pessoas gritando e o motor do ônibus em silêncio, só se podia ouvir o barulho dos sinos e da chuva, em uma sintonia quase perfeita.

Olhei para a outra porta aberta e comecei a correr. Por pouco não levei um tombo por escorregar no sangue do bêbado, mas consegui sair do veículo. A chuva forte e a neblina impossibilitavam por demais minha fuga, estava correndo por um lugar que jamais tinha visto, sem rumo algum.

Jamais deveria ter desejado um dia diferente. Estava vivendo o caos.

Nunca me senti tão vivo, a ponto de pensar que em meu cronômetro regressivo sobrava pouco tempo e que precisava fazer algo que pudesse atrasá-lo.

O agravante da velocidade, o fator definitivo, a justiça contra o tempo corria com vigor em meu encalço. Olhei para trás e o vi tirando a arma do coldre. Não tive tempo de pensar em nada, só fechei os olhos, escutei o barulho do tiro e senti como se tivesse levado uma forte pancada em meu ombro direito, caindo sem sentidos.


...


Como se tivesse saindo do fundo do oceano, desesperado para recobrar o fôlego, despertei. Estava em minha cama, com febre e suando como um porco.

Apenas um sonho?

Senti algo estranho dentro de minha meia e, ao checar, lutei para colocar meus pensamentos em ordem.

Lá estava ele, o sete de paus, sujo de sangue e com todos os seus detalhes vertiginosos.